Família de Nazaré: Teologia do corpo: "Na segunda narrativa da Criação encontra-se a definição subjetiva do homem"

Teologia do corpo: "Na segunda narrativa da Criação encontra-se a definição subjetiva do homem"

3ª catequese do Papa João Paulo II sobre o amor humano no plano divino, ou, mais precisamente, a redenção do corpo e a sacramentalidade do matrimônio. Alocução da Audiência Geral de Quarta-Feira, 19 de setembro de 1979, publicada no L'Osservatore Romano n. 38, de 23 de setembro de 1979.

1. Referindo-nos às palavras de Cristo sobre o tema do matrimônio, em que Ele apela para o "princípio", dirigimos a nossa atenção, há uma semana, para a primeira narrativa da criação do homem no Livro do Gênesis[i]. Hoje passaremos à segunda que, sendo Deus nela chamado "Javé", é muitas vezes denominada "javista".

A segunda narrativa da criação do homem (ligada à apresentação tanto da inocência e felicidade original como da primeira queda) tem, por sua natureza, caráter diverso. Embora não querendo antecipar as particularidades desta narrativa —porque nos convirá apelar para elas nas outras análises— devemos reconhecer que todo o texto, ao formular a verdade sobre o homem, nos maravilha com a sua profundidade típica, diversa da do primeiro capítulo do Gênesis. Pode-se dizer que é profundidade, de natureza sobretudo subjetiva, e portanto, em certo sentido, psicológica. O capítulo 2º do Gênesis constitui, em certo modo, a mais antiga descrição e registro da autocompreensão do homem e, juntamente com o capítulo 3º, é o primeiro testemunho da consciência humana. Com aprofundada reflexão sobre este texto —por meio de toda a forma arcaica da narração, que manifesta o seu primitivo caráter mítico[1]— encontramos nele "in nucleo" quase todos os elementos da análise do homem, aos quais é sensível a antropologia filosófica moderna e sobretudo contemporânea. Poder-se-ia dizer que Gn. 2 apresenta a criação do homem especialmente no aspecto da sua subjetividade. Confrontando entre si ambas as narrativas, chegamos à convicção que esta subjetividade corresponde à realidade objetiva do homem, criado "à imagem de Deus". E também este fato é —doutro modo— importante para a teologia do corpo, como veremos nas análises seguintes.

2. É significativo, na sua resposta aos fariseus em que apela para o "princípio", indicar Cristo primeiramente a criação do homem com referência a Gn 1, 27: O Criador no princípio criou-os homem e mulher; só em seguida cita o texto de Gn 2, 24. As palavras, que diretamente descrevem a unidade e indissolubilidade do matrimônio, encontram-se no contexto imediato da segunda narrativa da criação, cuja passagem característica é a criação separada da mulher[ii], ao passo que a narrativa da criação do primeiro homem (macho) se encontra em Gn 2, 5-7. A este primeiro ser humano chama a Bíblia "homem" ('adam), ao passo que, desde o momento da criação da primeira mulher, começa a chamar-lhe "macho", 'is, em relação com 'issâh ("fêmea", porque foi tirada do macho, 'is)[2]. E é também significativo que, referindo-se a Gn 2, 24, Cristo não só liga o "princípio" com o mistério da criação, mas também nos conduz, por assim dizer, ao confim entre a primitiva inocência do homem e o pecado original. A segunda narrativa da criação do homem foi fixada no Livro do Gênesis exatamente em tal contexto. Nele lemos, primeiro que tudo: Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Ao vê-la, o homem exclamou: "esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem"[iii]. Por este motivo, o homem deixará o pai e a mãe para se unir a sua mulher; e os dois serão uma só carne[iv].

Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha[v].

3. Em seguida, imediatamente depois destes versículos, começa Gn 3, a narrativa da primeira queda do homem e da mulher, narrativa ligada com a árvore misteriosa, que já antes fora chamada árvore da ciência do bem e do mal[vi]. Cria-se com isto uma situação completamente nova, essencialmente diversa da precedente. A árvore da ciência do bem e do mal é uma linha de demarcação entre as duas situações originais, de que fala o Livro do Gênesis. A primeira situação é de inocência original, em que o homem (macho e fêmea) se encontra quase fora da ciência do bem e do mal, até ao momento em que transgride a proibição do Criador e come o fruto da árvore da ciência. A segunda situação, pelo contrário, é aquela em que o homem, depois de transgredir o mandamento do Criador por sugestão do espírito maligno simbolizado pela serpente, se encontra, em certo modo, dentro do conhecimento do bem e do mal. Esta segunda situação determina o estado de pecaminosidade humana, contraposto ao estado de inocência primitiva.

Se bem que o texto javista seja no conjunto muito conciso, basta contudo para diferenciar e contrapor com clareza aquelas duas situações originais. Falamos aqui de situações, tendo diante dos olhos a narrativa que é descrição dos acontecimentos. Apesar de tudo, através desta descrição e de todas as suas particularidades, surge a diferença essencial entre o estado de pecaminosidade do homem e o da sua inocência original[3]. A teologia sistemática descobrirá nestas duas situações antitéticas dois estados diversos da natureza humana: status naturae integrae (estado de natureza íntegra) e status naturae lapsae (estado de natureza decaída). Tudo isto deriva daquele texto "javista" de Gn 2 e 3, que encerra em si a mais antiga palavra da revelação, e tem evidentemente um significado fundamental quer para a teologia da homem quer para a teologia do corpo.

4. Quando Cristo, referindo-se ao "princípio", manda os seus interlocutores para as palavras escritas em Gn 2, 24, ordena-lhes, em certo sentido, que ultrapassem o confim que, no texto javista do Gênesis, se interpõe entre a primeira e a segunda situação do homem. Não aprova o que "por dureza do coração" Moisés permitiu, e refere-se às palavras da primeira ordem divina, que neste texto está expressamente ligada ao estado de inocência original do homem. Significa isto que tal ordem não perdeu o seu vigor, ainda que o homem tenha perdido a inocência primitiva. A resposta de Cristo é decisiva e sem equívocos. Por isso, devemos tirar dela as conclusões normativas, que têm significado essencial para não só a ética, mas sobretudo para a teologia do homem e para a teologia do corpo, a qual, como um momento particular da antropologia teológica, se constitui sobre o fundamento da palavra de Deus que se revela como é. Procuraremos tirar essas conclusões durante o próximo encontro.



[1] Se na linguagem do racionalismo do século XIX, o termo "mito" indicava aquilo que não se encontra na realidade, o produto da imaginação (Wundt) ou o que é irracional (Lévy-Bruhl), o século XX modificou o conceito de mito.

L. Walk vê no mito a filosofia natural, primitiva e arracional; R. Otto considera-o instrumento de conhecimento religioso; enquanto para C. G. Jung, o mito é a manifestação de arquétipos e a expressão do "incônscio coletivo", símbolo dos processos interiores.

M. Eliade descobre no mito a estrutura da realidade que é inacessível à investigação racional e empírica: o mito transforma de fato o acontecimento em categoria e torna uma pessoa capaz de atingir a realidade transcendente; não é apenas símbolo dos processos interiores (como afirma Jung), mas ato autônomo e criativo do espírito humano, mediante o qual se realiza a revelação (cfr. Traité d'histoire des religions, Paris 1949, p. 363; Images et symboles, Paris 1952, pp. 199-235).

Segundo P. Tillich o mito é um símbolo, constituído por elementos da realidade, para apresentar o absoluto e a transcendência do ser, aos quais tende o ato religioso.

H. Schlier insiste em que o mito não conhece os fatos históricos e não precisa deles, pois descreve o que é destino cósmico do homem que é sempre o mesmo.

Por fim, o mito tende a conhecer o que é incognoscível.

Segundo P. Ricoeur: "Le mythe este autre chose qu'une explication du monde, de l'histoire et de la destinée: il exrpime, en terme de monde, voire d'outre-monde ou de second monde, la compréhension que l'homme prend de lui-même par rapport au fondement et à la limite de son existence. (...) Il exrpime dans un langage objectif le sens que l'homme prend de sa dépendance à l'égard de cela qui se tient à la limite et à l'origine de son monde" (P. Ricoeur, Le conflit des interprétations, Paris, Seuil, 1969, p. 383).

"Le mythe adamique est par excellence le mythe anthropologique; Adam veut dire Homme; mais tout mythe de l'"hommr primordial" n'est pas "mythe adamique", qui... est seul proprement anthropologique; para là trois traits sont désignées:

- le mythe étiologique rapporte l'origine du mal à un ancêtre de l'humanité actuelle dont la condition est homogène à la nôtre (...)

- le mythe étiologique est la tentative la plus extrême pour dédoubler l'origine du mal et du bien. L'intention de ce mythe est de donner consistance à une origine radicale du mal distincte de l'origine plus originaire de l'être-bon des choses. (...). Cette distinction du radical et d'originaire este essentielle au caractère anthropologique du mythe adamique; c'est elle qui fait de l'homme un commencement du mal au sein d'une création qui a déjà son commencement absolu dans l'acte créateur de Dieu.

- le mythe adamique subordonne à la figure centrale de 'homme primordial d'autres figures qui tendent à décentrer le récit, sans pourtant supprimer le primat de la figure adamique. (...)

Le mythe en nommant Adam, l'homme, explicite l'universalité concrète du mal humani; l'esprit de pénitence se donne dans le mythe adamique le symbole de cette universalité. Nous retrouvons ainsi (...) la fonction universalisante du mythe. Mais en même temps nous retrouvons les deux autres fonctions, également suscitées par l'expérience pénitentielle (...). Le mythe proto-historique servit ainsi non seulement à généraliser l'expérience d'Israël à l'humanité de tous les temps et de tous les lieux, mais à étendre à celle-ci la grande tension de la condamnation et de la miséricorde que les prhphètes avaient enseigné à discerner dans le propre destin d'Israël.

Enfin, dernière fonction du mythe prépare la spéculation en explorant le point de rupture de l'ontologique et de l'historique" (P. Ricoeur, Finitude et culpabilité: II. Symbolique du mal, Paris 1960, Aubier, pp. 218-227).

[2] Quanto à etimologia, não se exclui que o termo hebraico 'is derive duma raíz que significa "força" ('is ou 'ws); e 'issa está ligada a uma série de termos semitas, cujo significado oscila entre "fêmea" e "esposa".

A etimologia proposta pelo texto bíblico é de caráter popular e serve para insistir na unidade da proveniência do homem e da mulher; isto parece confirmado pela assonância de ambas as palavras.

[3] "A própria linguagem religiosa exige a transposição de 'imagens' ou, melhor, 'modalidades simbólicas', para 'modalidades conceituais' de expressão.

À primeira vista esta transposição pode parecer mudança puramente extrínseca (...). A linguagem simbólica parece inadequada para tomar o caminho do conceito por um motivo que é peculiar da cultura ocidental. Nesta cultura, a linguagem religiosa foi sempre condicionada por outra linguagem, a filosófica, que é a linguagem conceitual por excelência (...). Se é verdade que um vocabulário religioso é compreendido só numa comunidade que o interpreta e segundo uma tradição de interpretação, é também verdade que não existe tradição de interpretação que não tome como intermediário alguma concepção filosófica.

A palavra 'Deus', que nos textos bíblicos recebe o próprio significado da convergência de diversos modos do falar (narrativas e profecias, textos de legislação e literatura sapiencial, provérbrios e hinos) —vista, esta convergência, seja como o ponto de interseção seja como horizonte a fugir de toda e qualquer forma— teve de ser absorvida no espaço conceitual, para ser reinterpretada nos termos do Absoluto filosófico, como primeiro motor, causa primeira, Actus Essendi, ser perfeito, etc. O nosso conceito de Deus pertence, por conseguinte, a uma onto-teologia, na qual se organiza toda a constelação das palavras chaves da semântica teológica, mas numa moldura de significações ditadas pela metafísica" (Paul Ricoeur, Ermeneutica biblica, Brescia 1978, Morcelliana, pp. 140-141; título original: Biblical Hermeneutics, Montana 1975).

A questão sobre se a redução metafísica exprime realmente o conteúdo que a linguagem simbólica e metafórica esconde em si, é assunto à parte.



[i] Gn 1.

[ii] Cfr. Gn 2, 18-23.

[iii] Gn 2, 22-23.

[iv] Gn 2, 24.

[v] Gn 2, 25.

[vi] Gn 2, 17.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que você acha dessa postagem?

Copyright © Família de Nazaré Urang-kurai