6ª catequese do Papa João Paulo II sobre o amor humano no plano divino, ou, mais precisamente, a redenção do corpo e a sacramentalidade do matrimônio. Alocução da Audiência Geral de Quarta-Feira, 24 de outubro de 1979, publicada no L'Osservatore Romano n. 43, de 28 de outubro de 1979.
Leia Mais...Veja todas as catequeses que o FN publicou até agora clicando em Teologia do Corpo.
1. Na reflexão precedente, começamos a analisar o significado da solidão original do homem. A sugestão foi-nos dada pelo texto javista, e em particular pelas seguintes palavras: Não é conveniente que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele[i]. A análise das relativas passagens do Livro do Gênesis (cap. 2) levou-nos já a conclusões surpreendentes que dizem respeito à antropologia, isto é à ciência fundamental acerca do homem, contida neste Livro. De fato, relativamente em poucas frases, o antigo texto delineia o homem com pessoa com a subjetividade que a caracteriza.Quando Deus-Javé dá a este primeiro homem, assim formado, a ordem que diz respeito a todas as árvores que crescem no "jardim do Éden", sobretudo a do conhecimento do bem e do mal, aos delineamentos do homem, acima descritos, junta-se o momento da opção e da autodeterminação, isto é da vontade livre. Deste modo, a imagem do homem, como pessoa dotada de uma subjetividade própria, aparece diante de nós como acabada no seu primeiro esboço.
No conceito de solidão original está incluída quer a autoconsciência, quer a autodeterminação. O fato de o homem estar "só" encerra em si tal estrutura ontológica e ao mesmo tempo é um índice de autêntica compreensão. Sem isto, não podemos compreender corretamente as palavras seguintes, que constituem o prelúdio da criação da primeira mulher: "vou dar-lhe uma auxiliar". Mas, sobretudo, sem aquele significado tão profundo da solidão original do homem, não pode ser compreendida nem corretamente interpretada a situação completa do homem criado "à imagem de Deus", que é a situação da primeira, ou melhor da primitiva Aliança com Deus.
2. Este homem, de quem a narração do capítulo primeiro diz que foi criado "à imagem de Deus", manifesta-se, na segunda narração, como sujeito da Aliança, isto é, sujeito constituído como pessoa, constituído à altura de "companheiro do Absoluto", dado dever discernir e escolher conscientemente entre o bem e o mal, entre a vida e a morte. As palavras da primeira ordem de Deus-Javé[ii] que se referem diretamente à submissão e à dependência do homem-criatura do seu Criador, revelam de modo indireto precisamente tal nível de humanidade, como sujeito da Aliança e "companheiro do Absoluto". O homem está "só": isto quer dizer que ele, através da própria humanidade, através daquilo que ele é, é ao mesmo tempo constituído numa única, exclusiva e irrepetível relação com o próprio Deus. A definição antropológica contida no texto javista aproxima-se, por seu lado, daquilo que exprime a definição teológica do homem, que encontramos na primeira narração da criação ("Façamos o homem à Nossa imagem, à Nossa semelhança"[iii]).
3. O homem, assim formado, pertence ao mundo visível, é corpo entre os corpos. Retomando e, de certo modo, reconstruindo o significado da solidão original, aplicamo-lo ao homem na sua totalidade. O corpo, mediante o qual o homem participa no mundo criado visível, torna-o ao mesmo tempo consciente de estar "só". De outro modo não teria sido capaz de chegar àquela convicção a que, efetivamente, como lemos chegou[iv], se o seu corpo o não tivesse ajudado a compreendê-lo, tornando o fato evidente. A consciência da solidão poderia ter enfraquecido, precisamente por causa do seu próprio corpo. O homem, 'adam, teria podido, baseando-se na experiência do próprio corpo, chegar à conclusão de ser substancialmente semelhante aos outros seres vivos (animalia). E afinal, como lemos, não chegou a esta conclusão, pelo contrário chegou à persuasão de estar "só". O texto javista não fala nunca diretamente do corpo; até mesmo quando diz que "o Senhor Deus formou o homem do pó da terra", fala do homem e não do corpo. Apesar disto, a narração tomada no seu conjunto oferece-nos bases suficientes para perceber este homem, criado no mundo visível, exatamente como corpo entre os corpos.
A análise do texto javista permite-nos também relacionar a solidão original do homem com a consciência do corpo, mediante o qual o homem se distingue de todos os animalia e "se separa" deles, e também mediante o qual ele é pessoa. Pode-se afirmar com certeza que aquele homem assim formado tem contemporaneamente o conhecimento e a consciência do sentido do próprio corpo. E isto baseado na experiência da solidão original.
4. Tudo isto pode ser considerado como implicação da segunda narração da criação do homem, e a análise do texto permite-nos um amplo desenvolvimento.
Quando no início do texto javista, ainda antes de se falar da criação do homem do "pó da terra", lemos que "ninguém cultivava a terra e fazia jorrar da terra a água dos canais para regar o solo"[v], associamos justamente este trecho ao da primeira narração, em que está expressa a ordem divina: enchei e dominai a terra[vi]. A segunda narração alude de modo explícito ao trabalho que o homem realiza para cultivar a terra. O primeiro meio fundamental para dominar a terra encontra-se no próprio homem. O homem pode dominar a terra porque só ele —e nenhum outro ser vivo— é capaz de "cultivá-la" e transformá-la segundo as próprias necessidades ("fazia jorrar da terra a água dos canais para regar o solo"). E então, este primeiro esboço de uma atividade especificamente humana parece fazer parte da definição do homem, tal como emerge da análise do texto javista. Por conseguinte, pode-se afirmar que tal esboço é intrínseco ao significado da solidão original e pertence àquela dimensão de solidão através da qual o homem, que desde o início, está no mundo visível como corpo entre os corpos, descobre o sentido da própria corporalidade.
Sobre este assunto voltaremos na próxima reflexão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que você acha dessa postagem?